quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Tudo estava silencioso. Nem mesmo os insetos se permitiam fazer barulho. Talvez por causa da tensão que pairava no ar da noite ou quem sabe o cheiro de sangue incomodava os sentidos até mesmo dos insetos. A cena estava longe de ser uma cena bonita.

Jamais ninguem iria fotografar, nem pintar e muito menos comentar um momento como aquele. Nem mesmo os artistas mais ávidos de sangue iriam querer degustar as caras de pânico estampada nos rostos jovem e mortos.

Todos os rostos mortos, pálidos... Alguns cobertos de sangue, outros de terra e alguns ainda irreconheciveis

Por que? Alguém sabe me responder por que aquela bomba fora jogada ali?

Ninguém perguntou para a morte, ou melhor dizendo, pra mim, o que eu pretendia fazer naquela noite

será que eu nào esperava ouvir radio e tomar chá como a maioria das familias faziam em tempos de paz?

será q eu nao tinha um ingresso pra ópera?

Não... Ninguem nunca pergunta: "o que será que a ceifadora pretende fazer esta noite, será que nao atrapalharei seus planos morrendo???"

E aqui estava eu. Em uma das mais dolorosas cenas que eu presenciei em todos esses séculos de trabalho árduo e interminável. Uma bomba meus caros. Uma enorme bomba, em um hospital de guerra! E só uma figura se destacava no meio de tudo isso. Uma pequena garotinha de cablos avermelhados e pijama branco. Mas ela estava longe de ser uma das vitimas. Nem mesmo outra ceifadora.

Imaginem! Pra que 2 em uma mesma tragedia??

Em tempos de guerra como essa, que diga-se de passagem foi a pior que já presenciei, era um pais por ceifadora! E fiquei satisfeitas!!!

Maldito trabalho não remunerado! E eu sequer escolhi isso!

Comecei meu trabalho, recolhendo uma por uma daquelas pobres almas. Enterrando as minhas mãos geladas nos peitos daquelas pessoas que um dia tiveram uma história, e retirando a sua pequena essência. Sua fagulha de vida, sua conciencia. E depositando no frasco, que parecia maior que coração de mãe, sempre tinha lugar pra mais um... E depois depositar todas essas memórais na nossa imensa bacia , onde elas seriam tratadas.... e depois recolocadas em novas carcaças pra adquirir mais memórias e enriquecer o nosso banco de dados. Vendo por esse lado poderíamos pensar que eles eram apenas formigas... Mas não eram.

Fui um deles certa vez... E acredite, aprendi a amá-los, mesmo com tanta podridão e escuridão no coração humano.

Recolhi uma por uma, e coloquei no meu frasco. Vi a memória de todos quando os tocava. podia ver tudo. Quem eles foram, não somente nessa, mas em todas suas vidas.

Mas um deles realmente tocou fundo em meu coração, há muito tempo parado.Aafinal, fui uma dama certa vez! E esse coração... Eu amei. Quando meu coração ainda batia.

Conhecia essa história! Vi meu próprio rosto refletido nos olhos deste homem.

N~so fazia muito tempo. pelo menos não pra mim. Realmente aos olhos dele eu era mais bonita do que aos meus olhos. Ele estava diferente e o coração dele... Quebrado, cheio de magoas e dores.

Afinal porque?

Vamos voltar só um dia nessa historia, e tudo fará muito sentido.

Era um dia normal. Eu já havia sido avisada da tragedia, e do trabalho extra. Estava a espera. Naquele hospital muito movimentado, onde não se fazia mais diferença entre enfermeiros e médicos. Todos atendiam igual. Feridos vinham de todos os lados e nao havia tempo. A vida gritava em todos os seus momentos.

O médico corria apavorado de um lado para outro... 3 amputaçoes, um parto e 26 mortes. Tudo em um único dia.

Ele era jovem e recém formado. Não fora recrutado pra guerra dado seu problema pulmonar que quase lhe custou a vida quando era pequeno, mas nessas situações nao se faz distinção. Médicos eram médicos.

Mais uma ambulância chega cheia de feridos do front. Ele ouve chamarem seu nome alto e pedirem ajuda. Ele vai ate a ambulÂncia e tira todos de lá. E vê a pequena garotinha ruiva sentada no fundo do carro.

perfeitamente bem e linda...

Ele pensa por um segundo quem era a garota mas não tem tempo de se deter nisso. Corre para colocar todos nos seus lugares. Todos sendo atendidos.

Um minuto de calma e ele é chamado para uma cirurgia. Estilhaços de um projetil no peito de um jovem de 18 anos. Ele nem pede nome. Corre para a sala sem tempo sequer de trocar de jaleco. Na mesa de cirurgia, ele vê o rosto do próprio irmão se contorcendo de dor. Morrendo. pálido.

Ele precisa salvar o garoto. Precisa... A qualquer custo. A dor no seu próprio peito é excruciante! Ele tenta por longas 3 horas. Mas o garoto morre, apertando sua mão.

Nesse momento. o tempo parou. Ele ja nao ouve mais nada! Perdera tudo e todos.

Mortos! Todos eles....

Ele entra em um estado catatônico e vai até um banco que ficava perto de uma janela. Senta ali, com o rosto entre as mãos. As lágrimas nao correm mais. Ele já havia morrido por dentro.

Por um milésimo de segundo a menina ruiva esta caminhando próxima, com os pequenos pés descalços no chão frio. Ela toca o ombro do médico e ele fica alarmado com o toque da mãozinha quente. Olha pra menina, que some no ar e ele logo vê uma enfermeira correndo desesperada e gritando. Ele não entende o que ela fala e não consegue se mover. Ela aponta para a janela e ele olha. Aquela visão pareceu durar anos. A bomba enorme vindo na direção dele. Sem se mover, ele fecha os olhos e tudo fica em silêncio o frio toma conta. Nada mais importa. A única coisa que permanece ali é a saudade e a visão da pequena menina que nao fazia perte desse mundo. A correria que aconteceu ali foi grande. Mas todos morreram no final. Não houve tempo pra nada. Nenhum adeus, nenhum bilhete, nenhuma carta, nenhuma foto. Apenas eu... Horrorizada com a situação. Esperando minha vez de trabalhar!

Ah! Esse coração...

Chorei com suas memórias...

Chorei de saudade.....

Chorei de pena...

Chorei de amor...

Chorei de compaixão. E o que me resta?

Levei o frasco para o lugar onde deveria levar. Ainda com minhas lágrimas escorrendo, cega. Despejei seu conteúdo no enorme lago que as memórias formavam.

Já havia ouvido historias sobre o fim das ceifadoras. Sobre o que acontecia com elas depois de algum tempo. Mas jamais tinha visto acontecer. E nem me importava. A dor me dizia o que fazer.

Larguei meus pertences ao lado da borda, e mergulhei, ainda chorando no lago da conciência e da memória. E ali, a dor cessou.

Ali, a água lavou meu coração há muito parado, e todo o ciclo iria iniciar novamente.

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